segunda-feira, 6 de julho de 2015

A magia inaugural na fotografia de Lucy Barbosa





Por onde começar? Como suportar as pequenas mortes do início das coisas? O olhar repousa sobre o dorso da paisagem como se a escutar os rumores da origem. Antes entendamos a paisagem como esse duplo fascinante do visível/invisível: o que toca o olhar – um homem com seu cajado de vertigens, acasalamento de ruínas, caravana de relâmpagos. Pensemos agora no olhar disparado por uma câmara fotográfica. Também aí a origem toca a si mesma, pescando fósseis, reconhecendo as estações movediças.
Um dia Salvador Dalí disse que "a fotografia nos oferece mil imagens fragmentários que dão lugar a um total conhecimento dramático". Tal observação cabe apenas se levarmos em conta a magia que lhe havia despertado esse então novo veículo, isto em 1929. A unidade é buscada em fragmentos e acende sempre uma condição dramática, não importa se alcançada por uma exposição de fotografias, o ladear de quadros em uma galeria, poemas em um livro, canções no palco.
O drama radica no espaço de existência, na percepção dessa existência, no ramo de conflitos que lhe define. O que me interessa em um fotógrafo (músico, poeta, escultor) é justamente quando ele percebe-se como passagem, respiradouro do que há de entranhável entre realidade e sonho, dias passados e dias por viver. Esse rigor ontológico da arte é o que tem sobrevivido aos tempos.
Em minhas conversas com a fotógrafa Lucy Barbosa (São Paulo, 1956), o assunto posto à mesa tem sido sempre o da errância como afirmação do ser, a entrega como estatuto essencial para que o homem caiba em si mesmo. Sobre essa condição nômade da existência, um dia ela me disse algo fascinante:
"Nada de fechadura, o ranger da chave não virá de repente fazer estremecer o cativo, nada está fechado, nada… Que este implacável horizonte, desmesurado mas hermético, onde nos reflexos fluidos da miragem, nossos corações, carregados de uma angústia inconfessa, procurarão um sinal, qualquer coisa, mas algo como um arbusto, um pedregulho, uma sombra, alguma coisa que nos prove que avançamos no caminho, que não andamos em círculo rebocados por uma bússola enlouquecida por alguma imprevisível anomalia magnética, e que estamos nos aproximando do objetivo."
Repete-se a pergunta: por onde começar? O mundo surge, descobre-se e se refaz no assombro de viver. Somos a chave na exata medida em que a buscamos. Lucy tem uma adorável consciência dessa errância que lhe caracteriza o trabalho.
"Antes de tudo sou uma viajante, retrato meus caminhos, amores e, nos últimos anos, a África é uma presença em minha vida. Quando conheci a África negra, em 1991, fiquei impactada e germinou a vontade de entender melhor nossa cultura afro-brasileira. Conheci Pierre Verger em Paris, que me indicou um caminho: Benin, e inclusive indicou várias pessoas que poderiam me ajudar nas pesquisas. Viajei então para Benin, e ali me encontrei com o olho d’água de nossas raízes africanas."
Sempre o mesmo ponto. A raiz puxando o fio, busca de uma origem que é também um recomeço e define o diálogo do homem consigo mesmo. A fotógrafa brasileira Lucy Barbosa formou-se em História da Arte em Paris. Em meio a estudos de etnologia, pesquisas envolvendo diversas culturas, a fotografia surgiu talvez como o catálogo "completo, escrupuloso e comovedor" a que se referia Dalí, um ambiente do testemunho do fragmentário das culturas. No entanto, ao mergulhar na diversidade revelou-se uma visão de mundo que unia fios de uma parte e outra, tessitura da cosmovisão que hoje lhe define uma poética.

UM DIÁLOGO NOSSO:

FM | Em tuas fotografias os personagens não são isentos de drama, ou seja, podem ser vistos como personagens comuns, com os quais nos identificamos, o que imprime à tua estética uma notável condição de humanismo. Em que radica essa opção por uma identificação imediata com a experiência concreta?

LB |  Não houve uma opção racional. Trabalho a fotografia como um poeta trabalha um poema, de uma forma emocional. Minha especialidade é a fotografia documental. Ela me permite retratar, também, meu olhar para a vida… Meus ensaios fotográficos não foram encomendados. Partiram espontaneamente, o que me permitiu fotografar livremente. Fotografei cenas do cotidiano, o dia a dia das pessoas, hábitos, tradições, que faziam parte também do meu cotidiano, do meu próprio dia a dia… Sim, fiz questão de retratar personagens comuns, com os quais nos identificamos. Quis mostrar que paralelamente a tudo o que se mostra sobre este continente (conflitos étnicos, epidemias e miséria), existe também paz, a normalidade dos afazeres diários como ir ao mercado, cuidar da casa, educar as crianças, trabalhar…. Enfim, a vida como ela é.

Esse apetite por indigestões é o que diferencia a obra de Lucy Barbosa de um mero captor de imagens. A imagem em si é uma burla, um ardil, uma ilusão de ótica. O mundo se encontra atrás da imagem. Ou dentro, se a imagem o sabe revelar.

FM | Em que sentido toda essa mescla de contatos te enriquece? Por exemplo, como somas os cultos religiosos das distintas etnias africanas com o nomadismo do Saara?

LB | Sou um mosaico de vivências e influências culturais. Brasileira, européia e africanas. Morei em Paris (1984-1993), e já fazem 10 anos que todos os anos passo uma parte do tempo na África. Assim sendo, pude, como você diz, percorrer territórios distintos na geografia humana. Allandulilah!!! Incluso o de cunho religioso, que veio agregar valores fundamentais em minha vida. Toda mescla de contatos é riquíssima, pois te apercebes das diferenças e dos diferentes valores culturais. Por exemplo, depois de ter convivido com o ceticismo europeu, na África convivo com uma profunda religiosidade nas pessoas, da proximidade que elas têm com Deus, com o divino. De como a religião e as práticas religiosas islâmicas norteiam suas vidas e referenciais. O animismo também é muito presente na África, mesmo se uma grande parte converteu-se ao Islam. Os africanos eram animistas como nossos índios eram antes de serem catolizados. A convivência destas fés (mulçumana e animista) são pacíficas e respeitadas mutuamente, afinal temos um livre-arbítrio. Floriano, os tuaregues, beduínos e mouros, são nômades com uma linhagem espiritual mais ligada ao Oriente, são menos mestiçados em relação às culturas animistas ou pelo vodu encontrado na África Negra. Deus meu, tantas Áfricas numa África!

Lucy Barbosa percorreu, entre 1997 e 1999, uma região imensa, envolvendo países como Mauritânia, Niger, Mali, Síria e Jordânia, documentando o cotidiano de povos nômades, a exemplo dos tuaregues, mouros, beduínos e peuls woodabes. Ela mesma os situa: "herdeiros de povos ameaçados de uma raça perseguida por outras raças, formam uma única nação feita de múltiplos povos justapostos, adicionados e jamais confundidos". Talvez radique aí um ideal da liberdade, a possibilidade, por exemplo, de uma América se perceber como conjunto de etnias que vêm sendo sistematicamente destroçadas.
Há dois ensaios fotográficos que definem essa aventura do olhar (percepção de mundo) em Lucy Barbosa, intitulados sugestivamente Mulheres de Ébano e Filhos do Vento. O primeiro busca revelar a presença da mulher ("a força matriarcal de procriação e manutenção da estrutura social do cotidiano e da vida"), enquanto o segundo percorre os rastros invisíveis do que ela mesma chama de "últimos cavaleiros do deserto". O toque – por onde começa o mundo – de câmara de Lucy alude a um portal sagrado, que dá acesso a tudo o que vemos, somos ou intuímos.
Sobre Filhos do vento, me revelou: "é uma continuação da busca de nossas raízes, desta vez moura! Fui seguindo um fio, que me levou a meus ancestrais… E o mais interessante, Floriano, é que quando me encontro em meio a este universo, bérbere, mouro, árabe, tudo me soa muito familiar. É como se meu espírito estivesse voltando para casa!"
A fotografia não dista nada de outra qualquer condição de abordagem do mundo. Também através dela se busca o coração das coisas. Quando indaguei a Lucy onde repousava seu olhar, quando mirava o deserto, me disse:

LB | No infinito, no grande silêncio, nessa imensa capacidade que ele tem de te humilhar, de te remeter a si mesmo, ao essencial... O deserto é, por excelência espiritual, um imenso jardim zen, conduz à contemplação. É um espaço fora do tempo, longe da história dos homens. É um espaço interior. Não viajamos nele, mas sim peregrinamos. Nunca me senti tão perto de Deus como lá.

Não há propriamente uma mesa em que real e imaginário ponderem acerca de insondáveis caprichos. Dalí se encantava com a alucinação da técnica, mas se pode ver em muito do que nos deixou uma alucinação do ser. Alheio a si mesmo. O que torna a fotografia de Lucy Barbosa um objeto de engrandecimento da beleza e de assombro diante da existência é que consegue projetar uma visão de mundo além do próprio tempo. Poderia estar pintando ou escrevendo. Põe-se diante do vazio e indaga: por onde começar?



[Originalmente publicada em Agulha Revista de Cultura # 15, agosto de 2001]




sábado, 9 de maio de 2015

O CORAÇÃO DOS OUTROS, de Celso de Alencar

Este é um livro de parábolas. Ou talvez seja apenas uma única, extensa e sinuosa parábola, em cujo interior flanam os elementos mais simples que nos convidam a descobrir um mundo oculto um pouco além de suas formas visíveis. Certa vez disse Raúl González Tuñón que Rimbaud enterrou a poesia em algum lugar desconhecido e que desde então o futuro a está esperando. Porém a poesia não acontece no futuro. Quando melhor aponta em sua direção é quando bem cuida das hortaliças e ervas daninhas de seu próprio tempo. A parábola a cuja decifração nos convida Celso de Alencar encontra-se marcada por uma hábil travessia do olhar, que vai de um ponto a outro da história de nossas vidas, até a conciliação mágica com aquele espectro em que se encaixam todas as vidas e assumem a essência de uma cartografia reveladora da própria humanidade. Um mapa cujo tesouro é ele próprio. O poeta faz com que habitem esse mapa sigiloso os personagens vários da memória, do vislumbre e do sonho. Faz com que os poemas se disfarcem em minúcias da existência de cada um deles. Os poemas flanam por dentro da paisagem transfigurada do livro, de tal modo que não os vemos como circunscritos às páginas que ocupam. Estão por todas as partes e se movem mascando segredos e traçando novos semblantes em que se multiplicam como uma cidade que não para de crescer. E sua jornada não é apenas a da habilidade discursiva. Transcorrem em uma linguagem cuja astúcia maior está em vencer o tempo. Estes poemas foram escritos há mais de um século e no entanto estão repletos de futuro. Sabem desentranhar a parte que lhes é fundamental na vida mais íntima da poesia. Sabem de onde vêm e qual futuro os aguarda a partir do momento em que são enterrados bem diante de nosso olhar. Como nos diz orgulhoso de seus princípios um dos personagens: "Eu nunca dei presentes a mortos". Este livro é um saltério feliz que regala presentes aos vivos, porém na forma de enigmas, de retalhos da existência que são as peças avulsas cujo significado só se deixa revelar aos que percebem seus enlaces, entroncamentos e gravitações. Somente aí compreendemos a raiz dessa parábola tecida por Celso de Alencar e o quanto que ela evoca e participa da fantástica aventura do homem sobre a terra. 



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Orelhas do livro O coração dos outros, de Celso de Alencar. São Paulo: Pantemporâneo, 2014.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

FLORIANO MARTINS | O que tem sido minha poesia

Nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu.

Aquinauta
  
O grande instante em que revelou-se diante de mim as portas da expressão poética no sentido em que a compreendo deu-se através da leitura de Blake. Ali estavam os traços de uma épica da maldição, uma sedutora leitura da treva. Ordenava-se então diante de mim uma fascinante concepção do mundo a partir da genealogia do bardo inglês. Foi o grande estalo para a compulsiva constituição de duas ou três personas, que passariam a representar a sustentação de uma poética nascedoura. O diálogo com o mundo era fecundo em sua multiplicidade. A herança paterna de uma vastíssima biblioteca aliada a um interesse crescente pela música, o teatro e a pintura. Modelou-se assim, aos poucos, uma disposição maior para combater o preconceito ou simplesmente evitar pequenos ardis da iconoclastia. Sempre preso à aventura pessoal, fui-me distanciando das experiências comuns à época, esquivando-me à rotina de minha própria geração.
Jamais me seduziu a ideia de aquisição intelectual tão-somente como um requisito estratégico. De grande valor, portanto, me foi sempre o dístico do sábio Aquinauta: extinta a vida dos sentidos, nada mais nos resta no espírito. O instinto natural de subversão nos leva a ouvir o outro, a contraí-lo enquanto perversão essencial à sua própria existência. Desta forma escapei de uma ideologia narcisista, de elogio ao próprio umbigo. Na primeira adolescência li o mesmo Drummond de todos, o mesmo Pessoa, o mesmo Bandeira. Costuma-se metaforizar a leitura, espoliar-lhe uma perversão que não é capaz de suportar. Antes é preciso entender que o homem age sempre contra si mesmo. Se linguagem é código, o símbolo radica na crueldade de seu exercício. Como entender a poesia sem perceber os desvios dialéticos de uma ostensiva profanação da própria essência do ser?
Diria que meus verdadeiros pares – os diálogos essenciais da poesia em mim – fui encontrar em distintos referenciais estéticos: os brasileiros José Santiago Naud, Ivan Junqueira, Uílcon Pereira e Sérgio Campos, os argentinos Juan Gelman e Leónidas Lamborghini, o chileno Ludwig Zeller, o catalão Josep-Ramón Bach, o cubano José Kozer. Seja pela leitura instigante de seus livros ou pela conversa possível com eles próprios, deliciosa na debulha de um curso existencial. A estas somaram-se outras vozes fundamentais, onde destaco a presença constante do crítico espanhol Jorge Rodríguez Padrón. Este múltiplo aprendizado, ao lado natural de um caudal de leituras igualmente diversificado, foram confirmando, ao longo de pouco mais de uma década, uma ética e uma estética, indissociadas. Uma possível estranheza na leitura de minha poética advirá certamente de sua ambição referencial, chamemos isto de originalidade de códigos ou de recusa a filiações a correntes dominantes.
Meu próprio vínculo ao surrealismo não vem de uma suposta recaída escolástica, até porque o surrealismo pode ser tudo menos uma escola literária. O que sempre me indignou no comportamento dos poetas brasileiros é sua capacidade de não comprometimento. Posam de franco-atiradores, ao mesmo tempo em que vivem à espera da grande oportunidade de pactuação com o poder literário. Aderi ao surrealismo basicamente por aversão a isso, mescla de indignação e provocação diante da falta de firmeza ética característica da intelectualidade brasileira.
Do ponto de vista estético naturalmente o surrealismo que desembocou na América Hispânica é muito distinto de sua origem parisiense. A própria relação entre história e cultura evidencia uma inversão de polaridade. Na Europa partiu-se de uma derrocada, enquanto que nos países hispano-americanos a tônica foi uma exacerbada fé em seu próprio destino. Niilismo versus prosperidade. Velho e novo mundo. Além disto a fundamentação estética da cultura hispano-americana encontrava-se então muito arraigada ao Barroco, e o relacionamento com a insurreição surrealista em muito a fortaleceu. Fortíssimo também foi o vínculo com o romantismo alemão – já anterior à acolhida dessa corrente pelos surrealistas franceses. Na base de tais relações encontramos poéticas que definem a inquestionável representação daquele período: Emilio Adolfo Westphalen, José Lezama Lima, Octavio Paz, Enrique Molina, Humberto Díaz-Casanueva, Luis Cardoza y Aragón, Pablo Antonio Cuadra, Vicente Gerbasi, Rogelio Sinán. No encontro com todas essas vozes fui aguçando minha inclinação pelo diálogo como fonte de enriquecimento da linguagem poética.
A figura astuciosamente polêmica de Borges indignou a muitos por sua rejeição ao período ultraísta, relegado por ele a mera aventura juvenil. Na outra ponta do raio, Neruda confirmou sempre sua falta de caráter, constatável sobretudo através da gangorra estilística que define sua obra. Em meio terreno, a polida política de Octavio Paz. O entendimento no Brasil da poesia hispano-americana não vai além da ambientação desse tríptico. Tão forte se mostra tal referência que à entrada de cada novo nome sempre se busca enquadrá-lo em uma das três angulações. Borges, Neruda, Paz deveriam equivaler – evidentemente que não em termos estéticos e sim no âmbito de um traçado canônico – a Oswald, Drummond, Cabral. Não encontramos, no entanto, na poesia hispano-americana contemporânea, vestígios de um epigonismo tão patente quanto o que se verifica hoje na poesia brasileira. Aqui incorremos sempre no desastre da mimetização. Terá a cópia da cópia cem anos de perdão? Toda a força lírica de nossa tradição poética foi transmutada em sub-expressão. De maneira inaceitavelmente escassa dá-se a percepção da preciosidade do espólio da poesia brasileira. Por sua vez, a política cultural praticada no Brasil não busca senão a evidência do falso valor, fundado em uma estereotipia ou no velho ramo de importação de pedras falsas para os porcos de casa. Nenhuma poesia sobrevive a isto.
O resto é decurso de prazo, balanço de tramas. Todo surto epigônico nacional oscila entre Oswald de Andrade e o Concretismo, cuja síntese centra-se ainda na obra de João Cabral de Melo Neto. Esgota-se toda auto-estima, toda consistência filosófica, toda expectativa de diálogo com o mundo. Naturalmente não me refiro a um programa político, e sim à maneira simplória com que nos desfazemos de nós mesmos. Refiro-me a toda a previsibilidade dos versos arrebanhadores de prêmios, dísticos, soluços, rimários, primor xerográfico, à preguiça mental evidenciada pelo epigrama dominical e à presunção do hai-kai. Refiro-me a puro e simples retrocesso. Desaprendemos a fazer poesia. Não alimentamos senão um ideal fraudado de nós mesmos. Cumplicidade com o efêmero, alheia à essencial firmeza de caráter imprescindível à formação de toda cultura.
Em meio a tudo isto fui tecendo o que Jorge Rodríguez Padrón certa vez estimou como sendo “complexa maturidade formal”, na verdade uma ambiciosa aposta de filiar complexidade técnica a experiência existencial. O corpo do poema como lugar de desenvolvimento da vida em si. A tudo recolhe a linguagem e lhe dá a dimensão de sua própria respiração. Desde Shakespeare a defesa de que a presença de determinadas personae fundamenta a estrutura de toda poesia. Firmeza ulterior, ao mesmo tempo em que distanciamento do ego. Deve então o poema propiciar um diálogo e não firmar-se como receituário. A partir daí fui compreendendo a importância de manifestar poeticamente a experiência pessoal, não sem evitar o decorrente ardil de contá-la, tendo em vista que essencialmente ali interessa desvelar a razão de seu próprio ser, e que tal operação se fundamente na maneira especial de agir, em sua singularidade, o que, por sua vez, reflete o compromisso com uma ambição de recolhimento de todos os sinais à sua volta, assim como sua intensidade fundante, sua aspiração por uma multiplicidade de leituras, métodos, códigos, fabulações etc.
Cabe a esta altura dizer que minha individuação dá-se justamente pela associação hábil de traços, escrituras, motivações, vestimentas, de todas as inúmeras formas de diálogo que estabeleço com o mundo. Tudo emerge de um sangradouro de palimpsestos. De um verso de antigo poema, Sérgio Campos extraiu o que denominou como sendo a “chave de tal escritura polissêmica”: tenho a alma em chamas. E disse ali encontrar, “nessa metáfora ígnea, a revelação surrealista epidérmica, sensorial, a força da palavra do exilado na escritura de sua maldição, e a invocação de um romântico em êxtase, esgotada, possivelmente, em pleno trânsito até o símbolo, nas fronteiras de Rimbaud”.
Desde sua leitura ficou claro que tal metáfora definiria com exatidão uma recolha possível de minha poética. Nenhum outro amigo acompanhou tão de perto as irradiações de meus embates com Bosch, Brueghel, Pirandello, Dostoievsky, Lezama, Pessoa, Frank Zappa, Keith Jarrett. Minhas portas da percepção abriam-se para o convívio com a música, a pintura e a literatura. A escritura poética não é senão a forma única de resistência, do sangue e do espírito, com a qual nos unimos ao mundo, em busca da permanência de sua estoica caminhada. Na viagem, emergem ritmos, discursos, similitudes, dissonâncias, alegorias, o que mais regule a fantasia humana. O emblema da alma em chamas não repercute senão uma recusa austera à morte em vida, ao alinhamento a esta ou aquela corrente dominante.
Creio que a visceralidade da escritura poética pode muito bem somar as proposições de Bachelard e Calvino, visto que a ideia que temos de nós mesmos é uma mescla de devaneio e exatidão. Do que não podemos nos despir, sob pena de negação da própria espécie humana, é da função dos sentidos, de seu alcance e significação. A impressão que me passa atualmente a poesia brasileira é a de uma incapacidade de recorrer à linguagem para transcender o equívoco de uma dirigida uniformização de valores. Reduz-se então todo o processo criativo a uma compactuação simbólica, configurando-se aí tão-somente uma limitação doutrinária da própria natureza humana.
Toda a poesia que se cultua no Brasil atualmente parece-me uma negação do ser, em grande parte propiciada pela frouxidão do arco. As imagens soldam em seu corpo as mais diversas formas de apreensão da realidade. O poema será sempre a expressão genuína desse suntuoso paradoxo. As explicações sentam e esperam. Não se trata de Guernica e sim dos carvões de Goya. Em precárias afirmações desgasta-se o mundo ao mesmo tempo em que se refaz em sutilíssimas sugestões. A palavra não fundamenta-se em si mesma e sim na imagem que a rasga de um ponto a outro na escala dos sentidos. Ambientá-la entre lasciva e consternada, desbragada e solene, não define coerentemente as possibilidades de comunhão com a mescla de devaneio e exatidão que encarnam.
Por último, um grande desafio que sempre me seduziu dá-se na fusão de elementos característicos da tragédia e da lírica – sem descuidar jamais da acentuada concentração dos recursos empregados, de maneira a evitar toda e qualquer digressão que venha a comprometer tensão dramática e densidade imagética. Indispensável, portanto, a presença de certos recursos, a exemplo da constituição de personae e da ambientação poética a partir do desempenho de uma formulação ética reconhecida (por mim) como tal. Equação dificultada pela dificuldade mental da compreensão do humano em nós. Como defender uma razão de ser em uma época caracterizada pela sistemática descaracterização do ser? Concebo então minha estoica aventura como qualquer outra: uma imposição ao reconhecimento de si mesmo.



[Prólogo do livro Alma em chamas, de Floriano Martins. Fortaleza: Letra & Mùsica, 1998.]


segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

DOSSIÊ SURREALIMO | Poesia & Liberdade









 





Coordenação Editorial:
Maria Estela Guedes (Portugal) & Floriano Martins (Brasil)
Concluído em 2009 
A
ALLAN GRAUBARD & CAROLINE MCGEE | WOMAN-BOMB/DE SADE
B
BERNARDO BOLAÑOS | BRETON Y EL EXOTISMO LATINOAMERICANO
C
D
E
F
G
J
L
M
MAXX RUSH | ECORDISM: AN INTERVIEW WITH WILLIAM A. DAVISON
N
NICOLAU SAIÃO | EU ERA SÓ P'RA DIZER
O
P
R
S
T
THELMA NAVA | LA SEDUCCIÓN DE LAS PALABRAS
V


domingo, 5 de outubro de 2014

CARLOS BARBARITO | El relámpago de la sombra



El poeta Carlos Barbarito empieza así su libro La orilla desierta (2003): Esta es mi vida, parece decir la hoja / que cae desde la rama / o la piedra que rueda por la ladera. Y aquí hay una dislocación estratégica que hace que el poeta salte de una esfera a otra. No es el poeta quien dice: Esta es mi vida, como se podría pensar en el primer momento, sino la naturaleza, que aquí nos habla a través de la hoja y de la piedra. Sin embargo, al mismo tiempo sabemos que es el poeta quien le presta la voz. Entonces se transmuta en piedra y en hoja para que nos aproximemos a la intimidad existencial de la naturaleza. De alguna forma, La orilla desierta es un libro que nos prepara -o esencialmente prepara a su autor- para la entrada en Radiación de fondo, si consideramos que allí tenemos casi un inventario de la desnudez, en todos los sentidos. Es como si ahora percibiésemos lo que cada uno hizo con su visibilidad, algo que responda a la pulsante indagación. Y una vez más se confunden las voces -siempre estratégicamente-, del poeta y de la naturaleza. Y siempre hay un lector apresurado que insiste: la llave, ¿cuál es la llave de esta poética?
Carlos Barbarito posee el fascinante don de no entregar al lector nada más que pistas; jamás la llave. Y una de las pistas intrigantes de su poética está en la palabra desnudez y sus correlativos que se repite exhaustivamente, de libro en libro, y que en este Radiación de fondo transita como un guía, una intrigante especie de iluminación por encima de todo el error y toda la ceniza. Ahí está la presencia del inventario de las cosas que desaparecieron sin que hubiesen sido totalmente conocidas. Tanto en el poeta como en la naturaleza, el inventario de las máscaras que no se revelaron o entonces que se deshicieron sin centro de razón o de misterio. Evidente que la presencia de este nudus mantiene su seductora ambigüedad: tanto es privación como revelación, tanto lo que falta como lo que se muestra. Inventariarla significa provocar al lector (¿un gran guionista?) -y también al propio poeta- para que separe la paja del trigo. Y a veces esa dualidad nos convence de su eficacia. Hábilmente el poeta hace con que el lenguaje navegue entre el vacio y la plenitud, flujo y reflujo, provocando algo de malestar en la constatación de este tránsito. Es un juego, claro. No hay duda de que el lenguaje es un juego. Sin embargo su astucia está en el hecho de que se realice sin adornos, o sea, también el engaño está desnudo. Y en esto radica la gran fuerza de este libro.
Al conversar con el poeta, me ha dicho que le gusta la idea de la poesía como un modo de la radiación, una radiación siempre diversa, polisémica surgida desde el fondo de nosotros mismos, y ahí está un terrible secreto que (nos) revela: la fuente de la radiación, una radiación de fondo, cósmica hasta el punto en que cósmica es la existencia humana, esencialmente un chorro -¿imprevisible? -¿atraído?- de lo más negro que hay en el hombre, y en su relación con la naturaleza. No basta con decir eso por supuesto, para que el libro se abra como un testamento delante del favorecido. La poética de Carlos Barbarito viene hábilmente provocando una inquietud entre la cosa y su desmoronamiento, entre lo que imaginamos ser y lo que de un momento a otro se deshace.
Como él mismo lo sugiere en un poema de La luz y alguna cosa (1998), somos al mismo tiempo una cosa y otra cosa, o varias e inclusive las que no conseguimos nombrar. Y tenemos todavía esa pasión declarada de la poesía por la ciencia, como lo recuerda el poeta (mi fascinación por la astrofísica), donde el abismo no es tan grande como parece, o sea, la radiación cósmica de fondo está íntimamente vinculada a la paralaxi, que, a su vez bien podría ser una figura de lenguaje, un dislocamiento de la retina, una variación, sí, una variación.
Pero ¿qué hacemos con las distintas -entre infinitas e inconciliables- maneras de ver el mundo? No puede haber corrección de ángulo, ya que no se puede dar por cierto lo que no pasa de una confesión o aprensión. De vuelta al principio: Esta es mi vida, parece decir la hoja / que cae desde la rama / o la piedra que rueda por la ladera. Al buscar un desnudo intenso, la poesía de Carlos Barbarito descubre que son infinitas las capas de desnudez que se disfrazan de vestimenta, y que tal aventura es tan inagotable como lo es la propia vida. Este descubrir de un aspecto envuelto en mil aspectos es algo que podría haber alcanzado otro cuerpo, si acaso arte y ciencia no hubiesen sufrido, en un momento dado, de una vanidad galopante, dejando al hombre completamente desnudo.
Radiación de fondo, bajo cierto aspecto, expone esta desnudez, inquiriendo sobre sus razones y lo que hacer ante una vida sin artificios. Es como si oscilase entre la negligencia y la transgresión, el hombre -¿también el poeta? - ¿también el lector?- ya no se sabe a quién imputar la culpa. Y cuanto más se desnuda, no se encuentra culpa sino imprudencia, crimen, hesitación, perjuicio, su inventario inacabable. ¿Nos llena la razón de culpa? ¿No nos alimentamos de otra cosa que no sea de culpa? ¿Será esta nuestra radiación de fondo?

[2012]

[Prólogo de un libro todavía inédito. Traducción del portugués de Ana María Rodríguez González.]




domingo, 31 de agosto de 2014

INVENÇÃO DO BRASIL | Prólogo




Primeiras entrevistas que fiz a brasileiros foram a Gonzaguinha, Moraes Moreira e um artista plástico cearense chamado Zé Pinto. Final dos anos 1970. Início da década seguinte eu mudei minha residência de Fortaleza para São Paulo e ali entrevistei poetas como Roberto Piva, Claudio Willer e Jamil Almansur Haddad. Eram então realizadas ao vivo, com um pequeno gravador, seguidas de um exaustivo trabalho de transcrição. Logo vieram as entrevistas através da troca de cartas. Salvo engano as primeiras delas foram com José Paulo Paes, Teixeira Coelho, João Silvério Trevisan, entre muitas outras. Eram publicadas de imediato e simultaneamente no SLMG (Suplemento Literário Minas Gerais) e no suplemento dominical do Diário do Nordeste, em Fortaleza. Embora do ponto de vista do rendimento expressivo fossem entrevistas que oferecessem um corpo mais substancioso ao leitor, lhes faltava a contestação imediata, a contra-argumentação do entrevistador. Este aspecto foi finalmente resolvido com o surgimento da Internet, que me permitiu enviar as perguntas por etapa, ampliando o diálogo de acordo com as respostas do entrevistado. Foi assim que surgiram entrevistas a nomes como Antonio Cícero, Marco Lucchesi, Lêdo Ivo, Maria Lúcia Dal Farra, enfim, a maior parte dos diálogos aqui presentes.
Paralelamente às entrevistas com brasileiros fui mapeando a América Hispânica, neste caso entrevistando primeiramente seus poetas. Uma primeira compilação dessas entrevistas resultou no livro Escritura Conquistada (1998), edição nacional, fora de mercado, com 24 entrevistas, que teve posteriormente uma edição espanhola ampliada (Venezuela, 2009), em dois volumes que reuniam 52 entrevistas a poetas em todo o continente hispano-americano & Brasil. Meu trabalho de edição da Agulha Revista de Cultura, assim como as pesquisas em relação ao Surrealismo, permitiu uma ampliação de fronteiras e temas, de modo que também passei a entrevistar pessoas na Espanha, em Portugal, nos Estados Unidos, no Canadá… E não mais apenas o mundo literário, ou seja, os diálogos passaram a ser também com nomes ligados à música, às artes plásticas, ao teatro etc.
As entrevistas aqui reunidas – unicamente aquelas feitas a brasileiros – são fruto dessa estrada fascinante, e perfazem um período que vem de 1984 a 2012. A intenção é espelhar um corpo crítico variado no que diz respeito à criação artística e também à visão de mundo dos entrevistados, permitindo ao leitor uma compreensão tanto sincera quanto diversificada de um caudaloso dilema que nos irmana a todos e que se chama Brasil. Invenção do Brasil é um título que desde o princípio soube se impor, pois é exatamente disto que se trata. Quando um país parece fugir de si, como uma entidade viva que teme aceitar sua identidade, é hora então de inventá-lo. O compositor Tom Jobim costumava dizer que o Brasil é um país para profissionais. Essa aparente boutade incomoda como uma fístula. Este livro é uma ampla mesa de diálogos em que me sento para escutar um conjunto de vozes, independente de suas coincidências ou dissidências entre si. O ouro buscado aqui é o da visão múltipla que possa dar ao leitor referências para ajustar, confirmar ou desmentir sua própria ideia do que seja ou possa vir a ser este país chamado Brasil.

[2013]

[Invenção do Brasil. São Paulo: Editora Descaminhos, 2013. http://www.amazon.com/Inven%C3%A7%C3%A3o-Brasil-entrevistas-Portuguese-Edition-ebook/dp/B00FTBMR24]